Conclusão: Desafios éticos do atendimento online

 


“O bem - este é princípio incontestável - nada mais é que o mal não consumado”

- Wilhelm Busch.

 

A Ética

                 A frase do consagrado pintor, poeta e artista alemão, Wilhelm Busch (1832-1908) expressa uma preocupação fundamental da ética, que vai além do estudo de princípios que norteiam o comportamento humano. Ela se preocupa com a reflexão crítica sobre as normas e costumes que orientam não apenas as ações individuais, mas também as de grupos sociais, visando compreender o que é certo e errado, justo e injusto, enfim, o que é, bom e ruim. Cremos ser possível estabelecer uma relação com a postura do Conselho Regional de Psicologia (CRP), que argumenta que todas as profissões são definidas a partir de “um corpo de práticas que busca atender demandas sociais, norteado por elevados padrões técnicos e pela existência de normas éticas que garantam a adequada relação de cada profissional com seus pares e com a sociedade como um todo.”[1] Seriam tais normas éticas universais ou restritas a um contexto temporal definido? Sócrates (470-399 a.C.) pondera sobre o tema e escreve “Ética a Nicômano”, obra na qual expõe sua concepção sobre a ética e modo de vida baseado na eudaimonia.[2]

                Segundo Snell (2001, p. 164):

 

Pois antes que as palavras “virtude”, “bom” e “mau” chegassem a Sócrates, elas já haviam passado por muitas bocas e muitas mentes e, portanto, eram expressas e entendidas em múltiplos sentidos: ideias diversas haviam-se entrelaçado e confundido todas de tal modo que “virtude” e o “bem” já são para Sócrates algo muito complicado: é o aperfeiçoamento do “eu”, e ao mesmo também é “justiça”. [...]

               

                Com o desenvolvimento do pensamento filosófico e a sucessão de eventos históricos, o conceito de ética passa a basear em princípios universais, tais como: a dignidade humana, o bem agir, entre outras práticas e virtudes que são consideradas fundamentais para a convivência em sociedade. Já na prática, a ética pode ser aplicada em diversas áreas de nossas vidas, entre elas a política, a economia, a educação, a saúde e a ciência, que exigirão tomadas de decisões delicadas para não ferir a conduta correta.[3] É importante ressaltar que a ética não se limita a um conjunto de regras ou normas preestabelecidas, mas se caracteriza pela reflexão crítica e pela capacidade de questionar e revisar constantemente as suas próprias normas e princípios à luz da evolução da sociedade e do conhecimento humano.

 

 

A Ética e a Psicologia

                 Trazendo esta reflexão para um momento mais próximo do pensamento contemporâneo, entre 1929 e 1930, Wittgenstein[4] participa de uma conferência em Cambrige cujo tema foi o debate sobre a ética.[5]  Wittgenstein (1965, p.4) propõe refletir sobre a ética além dos conceitos gregos: “Em lugar de dizer que a ética é a investigação sobre o bom, poderia se dizer que a ética a é investigação sobre o que é valioso ou sobre o que realmente importa, ou poderia dizer que a ética é a investigação acerca do significado da vida, ou daquilo que faz com a que a vida mereça ser vivida, ou sobre a maneira correta de se viver”.[6]

                Como então, pensar sobre ética na psicologia? O Conselho Regional de Psicologia (CRP) oferece parâmetros bastante claros em sua página. Afirma que: “O Código de Ética do exercício profissional da Psicologia é um instrumento democrático e reflexivo orientado pelo compromisso ético-político para defesa da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade mental e física.” Uma vez que o profissional da psicologia coloca-se à serviço da construção de condições dignas de vida para todas as pessoas, o CRP define como o maior desafio ético a:

 

“responsabilidade social e a análise crítica de um contexto perversamente marcado por dilemas expressando conflitos éticos e demandas políticas desafiadoras de nossa capacidade de apreender a realidade que cotidianamente se faz presente em nossas diversas e plurais práticas profissionais e em relação às quais assumimos o compromisso de assegurar conquistas civilizatórias e democráticas para a garantia da saúde e da emancipação de toda a população.”

 

 

                A CRP também reconhece o momento histórico de “não observância da ética e desmonte civilizatório no âmbito do Estado”, apontando para ameaças na ação profissional. Claramente, uma referência às declarações anti-científicas do governo pandêmico, que desvalorizava campos do conhecimento, entre eles a psicologia. O XVI plenário do Conselho Regional de Psicologia de SP (2019 – 2022) apresenta uma posição firme em defesa da ética, declarando:

 

“defesa intransigente dos direitos humanos, o direito à vida digna de pessoas pretas, indígenas, mulheres, crianças, LGBTQIA+, gordas, idosas, pobres, com deficiência, mediante a análise crítica da realidade que cotidianamente nos convoca à reflexão acerca do nosso compromisso ético e político com a justiça social e com a liberdade e sua valorização no cotidiano de nossa prática, que na vida social produz efeitos, reverbera regimes de saber e verdades acerca do viver. A Psicologia é para todo mundo e se faz com Direitos Humanos!”

 

                Cabe ao profissional capacitado observar estas práticas em sua clínica particular ou em qualquer outro campo que atue, seja a psicologia hospitalar, escolar ou corporativa.

 

 

A ética da Psicologia no atendimento online.

                 Na quarta-feira, 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara o início da pandemia.[7] Este evento de caráter global transformou o mundo de maneira irreversível e seu impacto na saúde mental não foi desprezível. Os atendimentos psicológicos, interrompidos à princípio durante as primeiras semanas de quarentena, regressaram em peso devido ao aumento dos casos de angústia, depressão e demais enfermidades psicológicas, potencializados pela crise de saúde. Tal crise gerou um efeito dominó, começando na saúde, mas fazendo-se sentir na economia, na segurança, na educação, cultura e política. Os psicólogos logo foram convocados a voltar a atender, mas agora de forma remota.

                As exposições anteriores buscaram esclarecer como a ética e a Psicologia são práticas indissociáveis. Com isto em mente, não é pertinente indagar se a ética deve ser aplicada ao atendimento online (visto que não há como exercer a profissão sem ela), mas deve-se indagar como a ética deve ser expressa nos atendimentos à distância. O psicólogo pode atender online, desde que siga as normas e regulamentações do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e do Conselho Regional de Psicologia (CRP) do seu estado.

                O atendimento psicológico online é conhecido como psicoterapia online, e pode ser realizado por meio de videochamadas, mensagens instantâneas, e-mails ou outras formas de comunicação digital. Ele tem se tornado cada vez mais popular nos últimos anos, especialmente devido à facilidade de acesso, comodidade e flexibilidade que oferece aos pacientes. No entanto, é importante destacar que o atendimento psicológico online não é recomendado para todos os casos, e que nem todos os psicólogos estão aptos a oferecê-lo. É fundamental que o psicólogo seja devidamente qualificado e esteja preparado para lidar com as particularidades e desafios do atendimento online.

                Esta modalidade apresenta alguns desafios éticos que devem ser considerados pelos psicólogos que oferecem esse tipo de serviço. Entre eles, podemos destacar: a falta de privacidade, o comprometimento do sigilo profissional, dificuldade ou impossibilidade de aplicação de testes, o possível vazamento de informações e até a gravação da consulta.

                A privacidade (ou confidencialidade) é a pedra angular da prática psicológica, pois sem o sigilo profissional, não há como estabelecer um espaço seguro no qual o paciente pode confidenciar seus medos e angústias. É de importância primordial que o profissional de saúde mental tome medidas para garantir a privacidade e a confidencialidade do paciente durante as sessões remotas. O psicólogo deve usar plataformas seguras que ofereçam garantias que as informações do paciente não serão compartilhadas com terceiros. É importante também que ele oriente seu  sobre medidas que ele pode tomar para proteger sua privacidade. Não é incomum que os atendimentos remotos sejam realizados em casa, com outras pessoas por perto, que podem escutar a conversa que deveria ser sigilosa. O atendimento à distância pode tornar mais difícil a separação entre vida pessoal e profissional. É importante que o psicólogo estabeleça limites claros e respeite a sua própria privacidade, além da privacidade de seu paciente.

                Não é possível aplicar certos testes psicológicos online, e outros podem apresentar resultados diferentes quando aplicados remotamente. O psicólogo deve garantir que os testes utilizados sejam válidos e confiáveis nesta modalidade.

                Segundo o CRP:

 

                                                  “Códigos de Ética expressam sempre uma concepção de homem e de sociedade que determina a direção das relações entre os indivíduos. Traduzem-se em princípios e normas que devem se pautar pelo respeito ao sujeito humano e seus direitos fundamentais. Por constituir a expressão de valores universais, tais como os constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos; sócio-culturais, que refletem a realidade do país; e de valores que estruturam uma profissão, um código de ética não pode ser visto como um conjunto fixo de normas e imutável no tempo. As sociedades mudam, as profissões transformam-se e isso exige, também, uma reflexão contínua sobre o próprio código de ética que nos orienta.”

               

                Então, conclui-se que o atendimento online é tornou-se mais uma modalidade da prática profissional que sedimentou-se na prática terapêutica. Ela pode ser utilizada, sem que jamais se abra mão dos princípios éticos fundamentais, tais como estabelecidos pelo CRP. Entre eles, listamos:[8]

-  o respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

·      -  promoção da saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,

·      -   responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.

·        responsabilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática.

·      -   promoção da universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão.

·       -  zelo para que o exercício profissional seja efetuado com dignidade, rejeitando situações em que a Psicologia esteja sendo aviltada.

·        consideração das relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios do Código de Ética.

 

                Sugere-se também a leitura dos 25 artigos propostos pelo Conselho, que listam a responsabilidade dos profissionais na área. Os artigos, assim como o Código de Ética, podem ser acessados gratuitamente pelo site do conselho.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

Conselho Regional de Psicologia. Código de ética. (Artigo sem data de publicação e sem autor). Disponível em: <https://www.crpsp.org/pagina/view/49>  Acesso em: 14 de março de 2023.

 

MOREIRA, Ardilhes; PINHEIRO, Lara. OMS declara pandemia de coronavírus: Diretor-geral da OMS disse que declaração não muda o que a Organização e os países devem fazer para 'detectar, proteger, tratar e reduzir a transmissão' do novo coronavírus (Sars-Cov-2), causador da doença Covid-19. Ministro da Saúde brasileiro também afirmou que nada muda para o país. Portal do G1, publicado em 11/03/2020 às 13h28.

Disponível em: < https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-declara-pandemia-de-coronavirus.ghtml> Acesso em: 02 de abril de 2023.

 

PINA-NETO, João Monteiro de. Aconselhamento genético. J Pediatr (Rio J). 2008;84(4 Suppl):S20-26. doi:10.2223/JPED.1782

 

SNELL, Bruno. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. São Paulo: Perspectiva, 2001.

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Conferencia sobre ética, con “Notas de las conversaciones con Wittgenstein” de Friedrich Waismann y “Acerca de la concepción wittgensteiniana de la ética” de Rush Rhees. The Philosophical Review, vol. LXXIV, n. 1, janeiro de 1965. Artigo online disponível pela Escuela de Filosofía Universidad ARCIS. Disponível em:

<http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/FILOSOFIA/Artigos/conferencia_etica.pdf> Acesso em: 14 de março de 2023.

 

 

NOTAS:

[1] As citações referentes ao Conselho Regional de Psicologia foram extraídas de sua página oficial. Devido ao fato de serem textos escritos pelo Conselho e não por um autor específico, e por estarem dispostos em uma página da internet no qual a contagem da página não é possível, as informações serão citadas sem os dados de página e autor. O site do CRP está disponível em: <https://www.crpsp.org/pagina/view/49>

[2] Eudaimonia refere-se a um conceito grego que passou por diversas traduções e por isto, foi compreendido de formas diferentes dependendo de sua acepção. Para este artigo, o autor optou trabalhar com o conceito do viver corretamente, e não da felicidade, como é usualmente compreendido. Para os gregos, a felicidade muitas vezes era considerada como um estado de espírito impossível de ser atingido completamente. Uma vida seria boa se medida não pelo parâmetro da felicidade, mas da eudaimonia, ou seja, de fazer o que é correto e cumprir seu propósito (que muitas vezes pode acarretar em insatisfação e infelicidade).

[3] Um exemplo sobre os dilemas éticos nas ciências pode ser encontrado no artigo sobre aconselhamento genético, conforme discutido nas aulas de Bases Biológicas dos Processos Psicológicos, pela profa. Juliana Carlota Kramer. A indicação do artigo segue nas referências.

[4] Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951), foi um filósofo austríaco, cuja obra focou na lógica, filosofia da mente e da linguagem.

[5] Apesar de ter ocorrido entre setembro de 1929 e dezembro de 1930, a conferência foi publicada apenas em janeiro de 1965 pelo The Philosophical Review. Acredita-se que seu título original em inglês tenha sido The Heretics e que a palestra tenha chegado até nós graças aos esforços de transcrição de Friedrich Waismann.

[6] A não ser quando indicado ao contrário, as traduções para o português foram feitas pelo autor do artigo.

[7] MOREIRA, Ardilhes; PINHEIRO, Lara (2020).

[8] A lista dos princípios éticos pode ser encontrada em versão integral no site do CRP, disponível em: <https://www.crpsp.org/pagina/view/49>

 

Comentários

  1. Parabéns pelo trabalho, pessoal!
    Vocês produziram um trabalho bastante completo: trataram dos aspectos históricos recentes, a regulamentação da atividade, indicaram como realizar o cadastro no e-psi, enfim, abordaram a temática em suas múltiplas dimensões. O texto está muito bem escrito e utiliza-se corretamente as normas da ABNT quanto a citações e referências. O tópico Prós e contras da terapia mediada por tecnologias cumpre o papel de abordar de forma crítica essa forma de trabalhar. Há outro aspecto que sugiro para reflexão que, infelizmente, é pouco abordado, se trata das condições de trabalho em plataformas como o Zenklub, citado no texto. Há o risco de a psicologia viver o que chamamos de uberização do trabalho. Os dois últimos parágrafos da introdução e do post antes e depois são praticamente iguais, futuramente, evitem esse tipo de repetição. Vocês indicaram materiais para aprofundamento que são bastante pertinentes ao tema, contudo, não explicam o conteúdo que estão sugerindo (a breve resenha de que falei em sala). Não vou tirar ponto por isso considerando a qualidade do trabalho que realizaram, mas sugiro que atentem para as solicitações da avaliação em trabalhos futuros
    Nota 3.
    Abraço,
    Dímitre Moita

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